19/03/2016

5. A Viagem de Chihiro (2001)

Filme: A Viagem de Chihiro
Diretor: Hayao Miyazaki
Ano: 2001
Título Original: Sen to Chihiro no Kamikakushi

CENA
Viagem de trem


Eu ainda não vi todos os filmes do Miyazaki, mas minha intuição diz que ele nunca fez uma cena tão melancólica quanto essa.

Chihiro e Kaonashi (Sem-Face) embarcam num trem sobre a água para uma viagem à casa de Zeniba. O que se segue são dois minutos de pura reflexão e melancolia, que imagino que todos nós sentimos quando embarcamos sozinhos numa jornada de ônibus, metrô, trem, especialmente no escurecer... O Hayao Miyazaki evoca uma sensação que, por mais familiar que seja para nós, eu raramente vejo em filmes - pelo menos não tão bem feito quanto aqui.

Essa sensação é ocasionada pelo uso de impressões; esta é uma cena muito impressionista. Ele usa elementos como: os personagens figurantes (espíritos transparentes com semblantes de trabalhadores cansados), os sons (a água, o trem, o sinal de cruzamento passando e fazendo o efeito doppler), os planos (alguns remetendo à visão da janela, mostrando ilhas e vilarejos ao longe, os passageiros desembarcando na estação), as cores (no início a cena é clara, mas com o anoitecer tudo fica com um rosa crepuscular e logo a seguir, escuro - quando, então, vemos placas coloridas de neon pelas janelas), a progressão narrativa (o movimento dos passageiros no início ensolarado é drasticamente diferente da solitude da noite) e, principalmente, a música.

A música de Joe Hisaishi nessa cena é 50% da razão da cena ser tão eficaz no estímulo dessa sensação. Não tem parágrafo o suficiente aqui para eu dizer o quanto eu AMO as trilhas sonoras de Joe Hisaishi. Ele sempre me faz sentir emoções fortes. A música nessa cena também varia de acordo com a progressão das imagens: quando Chihiro entra no trem, a música é misteriosa, assim como o próprio trem é misterioso. Quando Chihiro se resigna a esse mistério e senta no banco, a melodia principal do piano se inicia e cresce até a chegada da primeira estação, quando sua intensidade diminui. Com o anoitecer, isso se repete: a intensidade aumenta e acontece um clímax orquestral quando há um zoom no rosto sério de Chihiro, em perfil.

E eu até diria que esse zoom é o momento mais importante na narrativa do filme, pois é basicamente o momento em que percebemos o crescimento de Chihiro, de uma menina mimada para uma menina determinada.

16/02/2016

4. 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968)

Filme: 2001: Uma Odisseia no Espaço
Diretor: Stanley Kubrick
Ano: 1968
Título Original: 2001: A Space Odyssey

CENA
Desligamento de HAL 9000


Após ter causado a morte de quatro astronautas e atentado contra a vida de Dave Bowman (Keir Dullea), o computador HAL 9000 (voz de Douglas Rain) - que durante o filme todo aparenta ser o personagem mais emotivo, apesar de sua inteligência ser artificial - pretendia continuar com a missão ao planeta Júpiter sem nenhum auxílio humano. Um típico caso onde a tecnologia se volta contra seu criador, exceto que este filme aborda a tecnologia e a evolução humanas desde a pré-história, então a abordagem é um pouco menos reducionista do que essa minha frase. O astronauta, porém, consegue sobreviver à tentativa de homicídio (o confronto dos dois é outra cena que eu poderia escrever aqui neste blog, ainda que seja imediatamente anterior a esta cena aqui) e com todo o seu sangue frio caminha diretamente ao circuito central de HAL com o propósito de desligá-lo.

HAL pretendia abandoná-lo fora da nave, mas Dave consegue entrar. Ainda com o capacete de oxigênio, o chiado do tubo e a respiração de Dave são dois sons que acompanham a cena inteira. Enquanto esses dois sons provocam certo nervosismo, a voz calma e suave de HAL forma um enorme contraste sonoro. Os sons "desagradáveis" são contínuos e a voz do computador é mais espaçada... reticente... HAL a princípio tenta acalmar Dave de maneira lógica e psicológica, assegurando-o de que seu funcionamento voltará ao normal e recomendando que Dave tome um comprimido para stress. Quando Dave finalmente entra em seu circuito e começa o processo de desligamento, HAL implora para Dave parar e diz estar com medo.

Sua declaração explícita de medo (seguida pela frase "I can feel it", que ele repete três vezes) é a última e mais definitiva prova de que ele virou um ser senciente, com emoções genuínas. Também é a conclusão lógica da evolução tecnológica do homem desde que criamos a primeira ferramenta (um osso usado como arma) no início do filme. Enquanto ele implora e sente medo, Dave continua o processo vagaroso de desligamento, desparafusando diversas plaquetas, uma a uma. É quase como uma neurocirurgia, especificamente uma lobotomia, e essa comparação faz ainda mais sentido quando, após HAL ter dito suas últimas palavras enquanto ser senciente, a sua consciência praticamente morre e ele retorna às suas memórias de "infância", num tom muito mais robótico: "good afternoon gentlemen, I am a HAL 9000 computer".

É interessante notar que nesse ponto, a respiração de Dave fica mais ofegante e suas expressões ficam mais consternadas, fazendo muito contato visual com o "olho" do computador que está ali do lado. Ele acaba de perceber que está "matando" HAL. Assim como Dave Bowman, o espectador sente empatia pelo computador, afinal, é o único personagem do filme a expressar suas emoções com tamanha vulnerabilidade. HAL diz que aprendeu uma canção com seu criador. Dave, com sua única fala durante toda a cena, diz que quer ouvir a canção. A voz de HAL já está ficando progressivamente mais grave neste ponto, como se ele estivesse se deteriorando. Sua performance da música "Daisy Bell" cementa toda a melancolia que a cena possui. Sua voz fica grave a ponto de ficar irreconhecível, até que ele já não canta mais... Uma gravação em vídeo surge e Dave descobre o real sentido da missão a Júpiter.

O uso da cor vermelha nessa cena é intensa: o uniforme de Dave é vermelho, todo o circuito central do HAL é vermelho, o próprio "olho" do HAL é vermelho... A única outra cor a fazer contraste é o branco dos chips que são desparafusados e que reflete no capacete de Bowman. Talvez essa minha interpretação a seguir seja muito viajada, mas whatever: o vermelho é uma cor muito orgânica e humana (é a cor do nosso sangue, afinal de contas), então o fato de o "cérebro" do HAL ser dominado por uma cor assim diz muita coisa dele. O branco de seus "neurônios" remete a seu lado mais abstrato e lógico, um lado que precisa ser refletido na cara do Dave para ele continuar com a frieza do desligamento, mesmo quando rodeado pelas emoções do computador (sonoramente e visualmente, através da cor vermelha). Podemos até notar o quanto Dave evita olhar ao seu redor, tentando focar apenas no branco dos chips - a humanidade de HAL o incomoda, pois provoca-lhe um conflito interno: ele estaria desligando uma ferramenta ou matando um ser vivo?

Por último, a direção: quando o astronauta entra no circuito, vemos um reflexo dele no "olho" do computador e os planos que se seguem são mais abertos, demonstrando todo o espaço neurológico de HAL. Quando este começa a cantar, os planos ficam muito mais intimistas, com close-ups do "olho" e do astronauta. Em geral, todos os ângulos escolhidos em um espaço que é tão aberto, mas ainda assim tão claustrofóbico, são incríveis.

11/02/2016

3. Delicatessen (1991)

Filme: Delicatessen
Diretores: Jean-Pierre Jeunet & Marc Caro
Ano: 1991
Título Original: Delicatessen

CENA
Em ritmo de sexo


Uma das melhores cenas de sexo do cinema é uma que não mostra quase nada do ato em si.

O filme se passa num apartamento e a narrativa é muito focada nas idiossincrasias de cada morador. Nós já havíamos visto as tarefas de cada um em planos e cenas anteriores, mas esta cena aqui demonstra como o prédio está todo interligado e seus moradores estão subordinados à figura do proprietário. O proprietário Clapet (Jean-Claude Dreyfus) começa a fazer sexo com sua amante. Todos os outros moradores estão em suas tarefas diárias (pintando o teto, construindo ferramentas, batendo o tapete, tricotando, tocando violoncelo, enchendo o pneu da bicicleta). A cama do proprietário, repleta de molas enferrujadas, começa a fazer barulho. O som passa pelo sistema de encanamentos e ressoa por todo o prédio. Todos os moradores fazem suas tarefas no mesmo ritmo. O ritmo aumenta. A cena se torna mais absurda. Todos infuenciados pelo crescendo rítmico. A montagem é espetacular. O compasso aumenta mais. Arco no violoncelo. Pincel-rolo no teto. Agulha no tricô. Ar no pneu. Metrônomo a 140bpm*. Mais rápido. Mais rápido. Orgasmo. Estouros. Queda.

(* Sim, eu calculei.)

08/02/2016

2. Mad Max: Estrada da Fúria (2015)

Filme: Mad Max: Estrada da Fúria
Diretor: George Miller
Ano: 2015
Título Original: Mad Max: Fury Road

CENA
Retorno à Cidadela


Uma das sequências de ação mais impressionantes que já vi. Após perceberem que o Vale Verde que tanto procuram não existe mais, Max (Tom Hardy), Imperatriz Furiosa (Charlize Theron), as Esposas e as Vuvalini decidem reconquistar a Cidadela, que há muitos anos está sob controle do vilão Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne). A Cidadela é o único lugar com água nesse deserto pós-apocalíptico. O que se segue é uma das inúmeras "guerras de estrada", que são uma marca da série Mad Max, onde batalhas acontecem enquanto carros perseguem uns aos outros. Normalmente são carros com design exagerados, mas nunca foram tão peculiares quanto neste filme. É impressionante que o penúltimo Mad Max tenha sido lançado 30 anos atrás e o George Miller tenha conseguido fazer talvez o melhor filme da série agora em 2015.

O filme parece que bebeu um energético: algumas cenas tiveram frames manipulados para que ficassem com uma ação fragmentada e rápida, parecendo desenho animado (ou um filme da era muda). Esta batalha continua essa hiperatividade que permeia o filme inteirinho (o filme só tem UMA cena pra respirar!). No meio dessa ação toda, vemos diversos carros, armas, roupas, itens e maquiagem que são um deleite para produtores de arte - apenas veja esse carro da imagem acima! Ele é uma espécie de carro musical, com amplificadores gigantes, feito somente para excitar os guerreiros, com um músico que toca uma guitarra que cospe fogo (!!!). O que deixa essa sequência tão impressionante é o fato de que usa 90% de efeitos práticos, ou seja, não-computadorizados. Quase tudo o que acontece é REAL, incluindo essa guitarra, as enormes explosões, os acidentes, as ações incríveis dos dublês etc. Em determinado momento, surgem carros com enormes varas envergadas, onde guerreiros equilibristas vão de um lado para o outro em cima das varas. Esse foi o momento onde eu pensei: "puta que pariu". Quando os dublês de um filme incluem artistas do Cirque du Soleil e atletas olímpicos, então você sabe que a porra é séria.

É uma sequência pra tirar todo o resto do fôlego que o filme já não havia te dado nenhuma permissão pra ter.

1. 12 Anos de Escravidão (2013)

Filme: 12 Anos de Escravidão
Diretor: Steve McQueen
Ano: 2013
Título Original: 12 Years a Slave

CENA
Linchamento de Solomon


O protagonista Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor), um escravo negro, acabou de espancar John Tibeats (Paul Dano), um trabalhador livre branco, após muitas provocações deste último. Isso era um crime inadmissível entre os sulistas americanos racistas do século XIX, então Tibeats promete vingança. Chapin (J.D. Evermore), o supervisor da plantação, aconselha Solomon a não fugir da fazenda, pois ali ele tem proteção, porém essa proteção virá a tempo?

Enquanto ele espera sentado, uma música assombrosa se inicia na trilha sonora: um acorde distorcido de guitarra que fica repetindo, e repetindo, e repetindo, e repetindo lentamente (quase um drone metal)... John Tibeats retorna à cavalo com mais dois companheiros e os três enforcam Solomon em uma edição rápida, enquanto os acordes assombrosos continuam. Porém, Chapin também retorna e ordena que os três soltem Solomon, pois ele pertence ao dono da plantação, que pretende pagar uma dívida através de Solomon. Todos vão embora, inclusive a música assombrosa...

...e aqui a cena se torna insuportavelmente agonizante.

Solomon é deixado semi-enforcado, apenas nas pontas de seus pés (que mal conseguem se fixar no chão, por conta do barro movediço), e a cena continua... A câmera fixa, o silêncio da fazenda (com sons de pássaros e insetos), os outros escravos passando ao fundo, continuando o trabalho do dia-a-dia, ignorando completamente sua agonia (pois poderiam ser punidos também, caso o ajudassem), crianças brincando... O plano dura um total excruciante de 1 minuto e meio sem cortes (!!!) até uma escrava levar um copo de água para ele, olhando ao redor, com medo. A cena ainda continua, apesar de agora ter vários cortes e insinuar uma passagem de tempo maior. Quando William Ford (Benedict Cumberbatch), o fazendeiro benevolente, finalmente chega para cortar as amarras da forca, o céu já tem as cores do crepúsculo - Solomon passou horas ali.